01 junho 2006
Espírito de Militância
O texto seguinte é uma espécie de «carta magna» do militante de esquerda, socialista.
Porque para além do programa, estatutos e restantes "códigos" aos quais nos vinculamos quando aderimos a uma organização, há uma forma de estar, sentir, pensar e agir que é partilhada pelos militantes de uma organização de esquerda, e que nos leva a procurar uma forma de intervir orientada pelo objectivo de transformar um sonho em realidade.
O Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo, Brasil, dedica-se à formação de consciências críticas, optando por posicionar-se relativamente à Ciência e Arte numa posição de vanguarda, priorizando a inovação e «contrapondo-se à rotina da mera repetição de teorias e técnicas».
O autor do texto que abaixo reproduzimos, Ranulfo P. da Silva, integra o CEPIS - Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae.
"Você pode até dizer que eu sou um sonhador. Mas não sou o único. Espero que um dia você se junte a nós. Então, o mundo será como se fosse um"
J. Lenon
Abertura
O contrário do medo não é a coragem, é a convicção. Ter convicção é apaixonar-se por uma causa e ser capaz de doar a vida por esse tesouro. Ao amante não se ensina o que deve fazer para agradar a pessoa amada. Com entusiasmo e ousadia inventa caminhos para alcançar seus objectivos.
A convicção é uma porta que só se abre por dentro. Ela manifesta-se em valores que saboreados e espalhados alimentam a esperança dos militantes, mesmo se vividos na tensão e de forma incompleta e imperfeita. Entre os valores indispensáveis que dão fundamento às convicções, destacam-se:
1. A indignação e a rebeldia
Uma das qualidades do militante de esquerda é a sua capacidade de indignar-se contra qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa. Achar natural a submissão, a dependência ou acostumar-se com a situação dos pobres é identificar-se com a direita, é ficar do lado da opressão.
Quem está no poder, em geral, gosta de gente obediente, que para tudo pede licença porque é fácil de manipular. A rebeldia não se confunde com amargura de quem é do contra. Nem dos insatisfeitos que só reclamam e nada fazem para mudar preferindo a cómoda posição de assistentes e juízes e, não raro, comprados pelo sistema. A rebeldia desperta a auto estima para não se deixar coisificar nem tratar as outras pessoas como coisas. É o embrião da consciência crítica capaz de desmontar a injustiça e comprometer-se na construção de uma sociedade sem dominação.
2. Sem medo de ser socialista
A militância nunca pode ter como centro o inimigo ou a opressão. A razão fundamental que move a militância é a certeza de estar construindo um chão e uma pátria onde não se chore mais a não ser de contentamento. E esse compromisso com a transformação nasce da certeza que os oprimidos têm interesse e capacidade para construir a sociedade onde a produção, distribuição e consumo se façam de forma partilhada.
No capitalismo, que se baseia na ganância e na competição dos indivíduos, não há lugar para os pobres como sujeitos e protagonistas. O socialismo, que coloca o ser humano e não o mercado como centro, possibilita uma relação entre os humanos, sem exploração e com a natureza, sem destruição. O recuo, erros e limites das experiências socialistas não negam o sonho, nem invalidam os esforços de tanta gente que entregou sua vida para um mundo de novos homens e novas mulheres.
3. A busca da prosperidade
Só quem perde a dignidade e o gosto pela vida, perde a vontade de crescer, ter mais, ser mais, saber mais e deixar sua marca no mundo. É legítimo o desejo de possuir os bens produzidos pela criatividade humana, sabendo que todo bem tem função social, é um bem que pertence a todos. No capitalismo, essa busca transforma-se em consumismo que é a vontade incontrolável de acumular bens que possibilitam a dominação.
Mas, a prosperidade que só é possível com trabalho, domínio da técnica e crescimento da consciência exige austeridade de vida - ninguém pode ter carência do necessário, mas não precisa ter mais que o necessário. Pois, é preciso pensar no básico para todos, no limite dos recursos do planeta e nas gerações futuras.
4. O espírito militante
O tarefeiro cumpre ordens, o funcionário trabalha pelo salário, o mercenário age para satisfazer seu interesse individual. Já o militante move-o a paixão - indignação contra a injustiça e ternura por todos os que se entregam à construção da nova sociedade. Essa paixão que une acção, razão e sentimento e invade o momento pessoal, a convivência familiar, o trabalho, a vida em grupo e a luta dos militantes.
A militância cultiva uma forte ligação com a base, tem clareza do rumo da luta e capacita-se numa área concreta. O militante segue orientações construídas colectivamente, mas age de forma autónoma e criativa. Busca a coerência entre o dito e o feito. Sabe que pode perder tudo, menos a moral. Acredita que a luta não vai só com a sua comunidade, seus filhos e sua família, mas não vai sem a sua comunidade, seus filhos e sua família.
5. Viver é lutar
Quem diz luta, diz sacrifício e quem diz sacrifico, diz também morte. Se o grão de trigo não morrer não dá fruto. A mudança da exploração para a solidariedade não se faz sem conflito e sem rompimento. Embora seja necessário evitar os sacrifícios inúteis, as transformações na natureza, nas pessoas e na sociedade não nascem de um acordo. O novo só aparece quando o velho for destruído. Nenhum direito, até hoje, foi reconhecido aos pobres por dever de justiça.
Todo direito humano nasce na rua, é uma conquista porque é a luta que faz a lei. É preciso conhecer as manhas e esperar a hora, sabendo, no entanto, que para haver mudança, na vida individual ou colectiva, será inevitável encarar a ruptura. Essas tensões e conflitos como dores de parto, antecedem a vitória da vida sobre a morte, sempre.
6. O amor pelo povo
A militância tem claro, mesmo sob o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por grandes sentimentos de amor. Os trabalhadores carregam muitas contradições e reproduzem boa parte da mentalidade dominante. Porém, mais que vítimas o explorado é um potencial inesgotável de formas de luta e fonte constante de novos militantes, pois, só o oprimido pode libertar-se, tem interesse na revolução e, ao libertar-se, liberta também seu opressor.
O militante sente-se parte do povo, sentido e razão de sua existência, e permanece com os oprimidos mesmo que aparentemente não tenham razão. Prefere o risco de errar com os pobres do que achar que vai acertar sem eles. Sabe que todo artista tem que estar lá onde o povo vive, luta, sofre, se alegra e celebra suas crenças. Não existe militante (fermento) fora da massa. Militância que se afasta da base e começa a pensar por onde os pés pisam, entra num processo de corrupção.
7. O poder como serviço
Numa sociedade dividida em classes, os líderes pisam o povo, usam o poder para submeter e explorar os pobres. Algumas lideranças populares, reproduzindo a prática da elite, também concentram o poder, usam métodos dos grandes para conseguir vantagens para o povo e na hora do conflito desagradam aos pequenos para não ficar de mal com os ricos e as autoridades porque fizeram do cargo seu meio de vida.
Ficar à frente, nunca poderia criar nos militantes a postura de chefes, assim como os abusos de poder nunca deveriam ser razão para se ter medo de querer o poder. O poder como serviço é um instrumento indispensável para organizar a luta e a multiplicação de novos militantes. O desafio permanente será como ordenar sem autoritarismo, conduzir sem manipulação, comandar repartindo o poder e cumprir as decisões colectivas, acima das vaidades e caprichos individuais.
Há muito tempo, já se dava aos militantes este conselho: Imagina-te como uma parteira. Acompanhas o nascimento de alguém, sem exibição ou espalhafato. Tua tarefa é facilitar o que está acontecendo. Se deves assumir o comando faze-lo de tal modo que auxilies a mãe e deixes que ela continue livre e responsável. Quando nascer a criança a mãe dirá com razão: nós duas realizamos esse trabalho. (Lao Tse, séc. V a.c.)
8. A reflexão para combater a alienação
Uma pessoa que não entende a raiz da injustiça é alienada. O processo de tomada de consciência contribui para quebrar todas as formas de alienação permitindo a descoberta do real. A superação da alienação é básica na criação da estratégia para construir o novo, o futuro, a vida, sempre.
A reflexão, o estudo, a leitura, o aprofundamento é um caminho para examinar a fidelidade à causa popular e apontar as mudanças que é necessário fazer na prática concreta. Pensar é um exercício que subverte a existência da militância para que ela jamais se acostume com a injustiça ou desanime na luta por um mundo sem dominação. Porque critica a militância de escritório, a mesmice, a repetição, a prática da manipulação, assim como exige o reconhecimento dos desvios e a necessidade do reparo, da autocrítica.
9. A solidariedade universal
Ninguém é uma ilha, a pessoa se realiza quando se relaciona com as outras. A doutrina capitalista de cada um conforme sua ganância, gera a dominação da elite e a exclusão da maioria. Contra a lei do mais forte os socialistas vivem e pregam a prática da solidariedade buscando a igualdade com a soma das riquezas individuais, mas sem superiores nem inferiores. Por isso, lutam contra a dominação de classe, a discriminação de género, o preconceito de cor e a intolerância cultural e religiosa.
A solidariedade manifesta-se na compaixão (capacidade de colocar-se no lugar da outra pessoa), na afectividade e no contrato entre parceiros. Mas, acima de tudo, pela entrega gratuita do que se tem de melhor, até a própria vida, para que pessoas e povos realizem o sonho da fraternidade universal.
10. O companheirismo
Companheirismo é a forma superior de relacionamento entre as pessoas, maior que os laços de sangue. É o gesto humano, fraterno e político, de quem crê na capacidade das pessoas, sobretudo os oprimidos.
Companheirismo é compartilhar o pão e o poder, em todos os espaços da vida, com quem se dispõe à mesma caminhada. Sentir-se companheiro é não ter cerimónia de falar de seus sonhos e limites e ter a certeza de ser acolhido, escutado, entendido, mesmo quando erra ou quando cobra.
As relações humanas e a caridade negam o companheirismo porque são mecanismos da dominação que mantêm a dependência, a relação entre quem manda e o subordinado que obedece, entre o doador e o coitado que recebe. A caridade aumenta nos pobres o sentimento de inferioridade.
O companheirismo revela-se especialmente na atenção ao trabalhador que ainda não entendeu a razão de lutar, no tempo dedicado aos jovens e às crianças, no carinho aos mais excluídos, no ombro solidário aos desanimados e no respeito ao parceiro(a) de vida e de caminhada.
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