17 novembro 2005

Urbanismo e Violência

imagem de gendarme francês em fato anti-motim numa das noites de violência em Paris

A propósito da crise urbana em França, encontrámos este artigo no site www.primeiralinha.org e que analisa de modo pragmático as causas da situação social que levaram aos recentes acontecimentos violentos.

A tradução vem já do espanhol para o galego e depois para o português, tendo portanto uma entoação um pouco estranha mas perfeitamente perceptível.

"A historiadora basca Alizia Stürtze parte neste artigo das violentas revoltas populares que se vivem nas últimas semanas em numerosas cidades de França para analisar a relação entre urbanismo e modelo socioeconómico. Uma lúcida reflexão sobre o carácter de classe da configuração das cidades sob o domínio do capitalismo neoliberal e a sua imbricação numa segregação social com base nas crescentes diferenças económicas entre o centro e a periferia do sistema. Reproduzimos, traduzido para a nossa língua, o artigo publicado hoje mesmo em espanhol pelo diário basco Gara. (www.primeiralinha.org, 13/11/2005)"

Urbanismo e violência

Alizia Stürtze

De que "guarida" foi que saíram essas massas de jovens desesperados que, com "apurado racismo democrático", ministros e comunicação social chamam de "imigrantes de terceira geração", "bandos incendiários", "hordas perigosas", "chusma merecedora da mais implacável das punições"… Onde foi que mantiveram invisível durante tantos anos a palpável marginalização e o claro fracasso do "estado de providência" que essa "rebelião dos miseráveis" que pegou nas periferias das cidades francesas e está a alastrar a outras urbes europeias representa? Como é que se compreende que na Cidade, nesse espaço que nos vendem como sendo inclusivo, integrador, solidário, intercultural e multiétnico, existam (e se potencializem) tais muros, reais e simbólicos, tal "separatismo social", tal classista segregação espacial/económica/social entre pacíficos cidadãos de bairros "top" e "gentes" de bairros "sensíveis", desarraigadas, ameaçadoras e potencialmente violentas?

Porque acreditamos nessa mentira mediática que, perante as imagens de jovens proletários/excluídos a queimarem carros ou fazerem frente à a polícia, deixa entrever que pobreza e violência vão necessariamente unidas, que essa violência é sempre unilateral e gratuita, e que apenas a estratégia policial/militar de "tolerância zero" pode levar segurança às cidades, como esses racistas/fascistas filmes ianques de "polícias salvadores contra pretos perigosíssimos" levam tanto tempo a nos mostrarem? Não será que esses jovens radicalizados recorrem à violência social como único modo de visibilizarem as gravíssimas consequências que a violência da urbanização actual, produto por sua vez do capitalismo neoliberal, está a fazê-los padecer? Afinal, como certeiramente Yves Pedrazzini sublinha no seu livro "La violence des villes" (A violência das cidades), a mundialização da economia tem determinado, entre outros aspectos, um certo tipo de arquitectura, de urbanismo, de "cidades globais" que impõem uma série de práticas sociais e espaciais que fam o jogo à violência do sistema: uma crítica da mundialização neoliberal deveria ir ao encontro de uma crítica do urbanismo actual.

Manifestação em Paris contra as medidas repressivas de excepção adoptadas polo Governo francês contra as revoltas populares das últimas semanas um pouco por todo o país

Noutro tempo, para quem éramos de esquerda, o urbanismo era um dos reflexos dos interesses da classe dominante. Um dos paradigmas dessa afirmação era constituído precisamente pela remodelação de Paris protagonizada pelo barão Haussmann, sob o império de Napoleão III, consoante os interesses da grande burguesia francesa: a construção desses 165 quilómetros de largas avenidas que ainda continuam a caracterizar a capital francesa diziam respeito à necessidade de potencializar a especulação imobiliária e, em simultâneo, facilitarem as cargas da cavalaria na repressão das recorrentes revoltas proletárias.

Não é preciso viver numa grande metrópole do Norte ou do Sul… em Bilbau, Donóstia, Irunhea, Gasteiz ou Baiona (embora sem dúvida em menor medida), também se pode perceber a relação directa entre os projectos urbanísticos dos últimos anos, que têm desestruturado totalmente as nossas cidades e transmutado a sua alma, e os grandes planos segregacionistas da fase actual do capital. Todos os projectos urbanísticos recentes respondem ao mesmo plano director, que vem claramente marcado pelo imperialismo neoliberal, e ao qual respondem as estratégias das grandes construtoras e imobiliárias e os poderes locais com os seus modelos de cidade asséptica, vigiada, sem pintadas, sem vida, sem latejar…

A luta popular contra a violência policial estende-se pelos bairros operários da periferia parisiense

Após terem potencializado a criação de sociedades medrosas (ameaçadas) e identificado o inimigo potencial com o pobre ou o imigrante (sem esquecer o terrorista), conseguiram globalizar a ideologia da segurança e a necessidade de "consumir" segurança. Isto permitiu-lhes não apenas encher o bolso (a "segurança" é hoje um dos melhores negócios), mas ainda transformar totalmente a paisagem urbana e legitimar uma filosofia política da repressão que converte as cidades em cárceres lotados de seguranças e câmaras, completamente fragmentadas entre espaços hiper protegidos e espaços "perigosos". Neste modelo excludente de cidade, a localização dos bairros pobres não é, com certeza, nada casual. Responde a estratégias defensivas que tencionam dividir e manter as diferentes classes sociais afastadas, ao passo que negam qualquer protecção aos excluídos face aos devastadores efeitos da orgia privatizadora actual que, de passagem, conseguem invisibilizar.

Entretanto, vende-se segurança aos "incluídos", privatizando os espaços públicos e convertendo-os em shopping centers super vigiados, aos quais os pobres não têm acesso, e a partir dos quais as multinacionais da alimentação, do vestuário ou a comunicação não só vendem as suas marcas, como também introduzem umas novas atitudes centradas unicamente no consumo, "esse consolo colectivo contemporâneo com que esquecer a insegurança". Fica assim erradicado todo o público, considerado perigoso contanto que "aberto a qualquer um", enquanto se privatizam, em benefício de uma elite, mercados, ruas, avenidas, praças e até o subsolo, e se geram cidades ultra conservadoras e repressoras a partir da sua mesma estrutura.

Depois de terem causado a morte de dois jovens, os polícias franceses continuam a fazer dúzias de detenções e a carregar com violência contra a juventude trabalhadora imigrante

É o que uns chamam de "urbanismo do oprimido" e outros de "urbanismo do medo". As divisões sociais, os relacionamentos de poder, ficam marcados nesse espaço urbano, o que faz com que os cidadãos de pró julguem que exista uma "violência dos pobres" (natureza criminosa da pobreza) de que cumpre proteger-se, e que esqueçam a opressiva realidade de uma violência estrutural que, marcada a dia de hoje pela barbárie neoliberal e a insegurança existencial, aterroriza desde a nascença todos esses jovens dos bairros com o desemprego, a falta de formação, o racismo, a degradação dos serviços sociais, a deterioração e a insalubridade da habitação… mas que também deveria aterrorizar todos os "incluídos" que julgam estar a salvo.

Agora, ao pé das leis de excepção, Chirac propõe uma reestruturação desses bairros periféricos em chamas. Dada a classe que defende e as suas racistas e classistas opiniões sobre essa "gentalha" vandálica que levam anos a depauperar, não podemos ficar à espera de nada de bom. Engana-se, no entanto, se calcula que seja possível arranjar uma segurança real e duradoura com base no aprofundamento da discriminação e da desigualdade, fundamentada em combater as consequências dos problemas e não as causas.

Já não serve esse "vigiar e punir" a que, segundo Foucault, a classe dominante quer reduzir os tão proclamados direitos humanos. A luta contra a violência das cidades começa indefectivelmente pela posta em prática táctica e estratégica do socialismo.
Não há outra hipótese.

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